TEXTO CONVIDADO:MARA NARCISO

TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO

Rituais
Mara Narciso

O tamanho da bagagem para uma jornada pode ser indicativo de como a pessoa é afeita a rituais. Pode até incluir rituais mágicos, mas falo das normas do cotidiano, da higiene, cuidados com pele, cabelos, maquiagem, roupas e necessidades indispensáveis, mas que para outros podem ser excentricidades absurdas. Há quem fique mais de duas horas, entre acordar, se higienizar e se aprontar para o trabalho ou uma viagem, por exemplo, para se sentir apto a enfrentar o mundo. As mulheres costumam demorar em se arrumar, mesmo quando não passam complicadas maquiagens, mas certos homens também ofertam carinho para si mesmos. Alguns usam de verdadeiro rito para se aprontar. Outros se vangloriam de pegar uma camisa e uma escova de dente e estão prontos para a viagem, mas a maioria prefere bagagem maior.

A cerimônia da manhã costuma ser a mais longa, mas outras surgem no transcorrer do dia, como o almoço, jantar e hora de dormir. Cada um tem seu estilo, o que pode incomodar quem está ao lado, por muito tempo como num relacionamento ou alguns dias juntos num quarto de hotel: desafio imenso!  Como cada um tem uma maneira, costuma incomodar ao outro mais do que se imagina. Há quem seja fino e educado, algumas vezes de origem humilde, mas que “afinou o bico” como se diz aqui no norte de Minas, e ganhou ares de sofisticação ao se alimentar, seja na escolha do alimento, na mesa posta, nos talheres ou na maneira exata de comer. Talvez tenha relaxado um pouco em tempos de coronavírus, já que boa parte tem se alimentado só, mas continua preso ao ato solene, e garante que aquilo seja natural.

O preparo na hora de dormir costuma ser um culto ainda mais variado. Há quem só durma se tomar banho (ato litúrgico, para alguns), imediatamente antes. Outros exigem lençóis trocados todos os dias. Há quem reze, veja filmes, leia livros, mas a maioria fica horas na internet. Na pandemia o horário ficou ainda mais elástico. Há os que se deitam às 20 horas e outros às 2 horas da manhã. Acordar vai de quatro horas até depois do meio dia. Cada um tem sua justificativa, já que boa parte não tem agenda e nem cumpre a rigidez do relógio. A flexibilização do isolamento está sendo implantada em todo o país e alguns já seguem horário. Ter uma rotina organiza as horas e mantém o equilíbrio mental, algo frágil diante das ameaças.

Pessoas mais propensas a intensificar rituais, especialmente os que já seguiam protocolos rígidos, tinham mania exacerbada de banhos, de desinfetar, de trocar de roupas, e organizar tudo (filas de objetos, rótulos virados para frente, separação por cor ou tamanho, nada torto a vista), viram comportamentos se acentuar no isolamento social. A imposição do uso de álcool gel, água sanitária, lavação impositiva das mãos, maior troca de roupas e banhos, deixar sapato fora de casa, uso de máscaras e luvas, geram insegurança e agravamento de comportamentos patológicos. Muitos são assaltados por dúvida sem saber o que fazer, onde colocar um objeto supostamente contaminado por estar chegando da rua. Não sabe como começar a desinfecção da feira, como concatenar as etapas para não misturar “limpo” com “sujo” e pôr tudo a perder, nesse mundo invisível. Lavar as mãos suscita incerteza, pois abre a torneira com as mãos sujas, fecha, e após lavá-las durante 20 segundos, não sabe como abri-la e novamente fechá-la. De fato, tornar a casa algo próximo de um bloco cirúrgico é tarefa impossível.

Quem já tem indícios de TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo, vê agravarem-se seus sintomas ritualísticos e sua angústia, que antes era reduzida quando cumpria o protocolo. As repetições levadas a cabo pela pessoa acometida, não fazem o menor sentido para quem vê, mas o aliviam. E quem tem propensão ao problema, pode passar a manifestá-lo de forma doentia, situação que o desgasta e consome. Quando tudo passar, como faremos para nos descondicionar dos rituais de desinfecção?

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