TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO

TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO


A Mara Narciso, no domingo passado, escreveu um texto inquietante. Imediatamente telefonei à minha amiga e afilhada (na Academia Feminina de Letras, todas nós temos um padrinho ou madrinha e a Mara me escolheu para madrinha quando do seu ingresso, o que foi pra mim uma alegria imensa, afinal, ela é alguém  que gosto e  admiro, como profissional e como pessoa, embora, às vezes, discorde do seu ponto de vista), para saber se estava bem e para comentar o texto. Profundo e muito real, traduz questões que me deixam reflexiva e descontente com o mundo em que vivemos. Trata da intolerância humana, da inversão de valores, mas, sobretudo, do egoísmo reinante e da pouca importância que se dá aquilo que está além do próprio umbigo. É um texto que todos deveriam ler. A decisão de colocá-lo no blog neste domingo não é à toa. Esperei uma semana, para que, depois de publicado em outros espaços, todos pudessem digerir, pensar. Agora, eis o texto. Quem leu anteriormente, relendo, poderá se defrontar com novas reflexões, quem  não, recomendo, pois é pra fazer pensar, e pensar. 

Viagem ao fundo do ego


Mara Narciso

            Na minha visão de mundo, nada poderá ser mais importante do que a satisfação imediata dos meus desejos. A minha saciedade plena em todos os sentidos é a razão de ser do meu universo pessoal. Os meus pensamentos não serão conhecidos, mas serão adivinhados. E que não precise acontecer um olhar, ou um leve oscilar de dedos, ainda que a minha mão permaneça suave sobre a mesa. Não suportarei, por menor que seja, nenhuma contrariedade. Eu não tenho sonhos, eu não tenho aspirações, eu tenho prazeres sanados de forma antecipada. Para mim não existem os outros, a menos que possam prover a minha sanha de satisfação. Não existe dentro de mim nenhuma paciência ou compreensão. Falhas serão cobradas com açoites, e caso se repitam, um tiro na nuca, ainda que figurado,  ocorrerá para a família pagar o projétil.
Após uma mínima falha, caso venha de joelhos beijar a minha mão, e lamber meus pés, não lhe lançarei nem mesmo um olhar. Não gasto nada com pessoas desprezíveis. O que dizem de mim, desconheço, e acho que ruins são os demais. Não tenho sentimentos e algumas vezes nem mesmo pensamentos outros que não sejam para o meu prazer de egoísta insaciável. O que me importam os outros? São meras figurações para que eu brilhe. O centro do mundo sou eu, e que os meus serviçais resolvam qualquer imprevisto, sem que seja necessário vir ao meu conhecimento. Não gasto décimos do meu tempo nomeando problemas.
Tudo gira em torno de resoluções para a minha paz e sossego. Jamais perco a compostura, ou me movo. Respiro de forma tão sutil que nem mesmo embaço um espelho, caso coloquem algum deles perto da minha boca suave. Não existe suor, não exalo nenhum odor. Meu alimento é o néctar, e as excreções somem no ar como fluidos incorpóreos invisíveis.
            Tédio, monotonia, existência vazia, nada para pensar amanhã? Debocho de tudo isso. São coisas humanas. Estou acima dos reles mortais. Tripudio sobre todos e qualquer um de vocês. Quem sou? Não gasto explicações com isso. Por exceção, hoje estou a diluir pelo ar, de forma magnânima, algo que possam compreender. Estou numa dimensão muito além do que a mente humana possa idealizar. Pessoas que se mostram indiferentes, me perguntam se tive pai e mãe, e se mamei num seio materno. Não sei. Na construção da minha superioridade e autossuficiência, isso pouco importa.
Para ser como eu, indiferente aos sentimentos humanos e suas mediocridades, tive um início de existência que não importa quando e nem onde. Atingi esta situação de equilíbrio idealizado e jamais alcançado. Sou e isso é suficiente. Aqui no meu estado espiritual não há medo, nem dor, nem qualquer incômodo, por menor que seja. Estar assim é bom. Minha apatia com o sofrimento é tal, que nem penso nisso. Devo ser aquele alguém que os psiquiatras juristas chamam de mente psicopata.
Eu não mato o corpo, eu mato a alma, com frieza e indiferença. Eu roubo a paz. Eu trago a guerra de espírito. É a mesma coisa, quase, e fico impune. Membros esperneantes não me sensibilizam. A lei não me alcança e nada pode fazer contra mim. Nisso sou imortal e gozo de inalcançável impunidade. O meu prazer é destruir pessoas, jogá-las ao leu, triturá-las, reduzi-las a pó. E quando me perguntam se isso não é aborrecido, respondo que nessa arena, mando eu, dou todas as cartas, incluo e excluo ao meu bel prazer, e ao final, dou a minha risadinha de desdém.
Obedeçam-me. Afinal, o mundo que coordeno é todo meu. Embora me pareça com um príncipe, sou um semideus das profundezas. Talvez seja imortal. Ainda que não gostem dos meus métodos, é assim que sou. E o melhor: eu não me importo se gostam ou não de mim.


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