TEXTO CONVIDADO II: ALBERTO SENA

TEXTO CONVIDADO II: ALBERTO SENA



“A CASA TOMADA”

ALBERTO SENA

Já faz alguns dias suspeitamos da presença em casa de um novo inquilino. Ele chegou sem bater na porta nem teve o respeito ou os bons modos recomendáveis aos humanos em qualquer relação. Simplesmente entrou. Em nenhum momento se anunciou com fazem todas as gentes de bem. Mesmo porque não pusemos à locação nenhum dos cômodos da casa.
Suspeitamos ser ele um intruso. Entrou de mansinho. Nem podemos dizer quando isso aconteceu. Tanto pode ter sido há três dias ou uma semana atrás. Ele entrou sorrateiramente, dúvida não há, porque mesmo em casa estamos atentos a tudo que acontece de dia e à noite.
O pior é sabemos ter em casa um novo inquilino e ignorarmos completamente o lugar apossado por ele, como fazem determinadas pessoas que se vão apossando de tudo como se não tivesse dono ou fazendo de conta que não sabem quem é o dono.
Na noite passada acordamos em meio à madrugada com um barulho esquisito vindo de cima para baixo. Saltamos da cama achando que algo havia caído do forro sintético. Não. Nada havia caído. Se de fato caiu alguma coisa – e alguma coisa sem dúvida caiu – foi do telhado sobre o forro.
Foi a partir desse incidente que chegamos a uma conclusão: pode ser que o novo inquilino tenha se ocupado não de um dos três quartos da casa. Menos ainda o banheiro, a sala ou a cozinha. Podia ser lá na área de serviço, mas não, ele se apossou de toda a parte de cima da casa e deve estar folgadão sobre o forro sintético.
Pode ser que ele seja vários indivíduos. Senão dois ou até três. Pode ser uma família. De dia ficam em silêncio. Não se escuta nada vindo do andar de cima, quer dizer, entre o telhado e o forro.
Mas naquela noite em que ouvimos algo cair, logo de manhã cedinho, antes de pôr água açucarada para os beija-flores e frutas para os demais passarinhos, ao abrir a porta da área de serviço, havia marcas de sangue do lado direito de quem desce as escadas, na parede e em alguns degraus.
As marcas estavam debaixo da janela do nosso quarto e não ouvimos nada. Concluímos que algum pássaro noturno devia ter apanhado uma presa e esfregara-a na parede. Ficou nisso.
Nesta noite passada, nada de anormal aconteceu. Ficamos pensando com os nossos botões “será que o inquilino saiu para visitar alguém? Sexta-feira da Paixão de Cristo, à noite, não é bem a ocasião pra sair fazendo visitas”.
Mas logo de manhã cedinho, hoje, sábado, a impressão era a de que o inquilino, senão podemos chamá-lo de intruso acabava de chegar da rua. Por onde andava esse indigitado? Entrou e se acomodou logo, como quem chega cansado e nem ânimo tem de tirar a roupa pra dormir. Desmonta logo sobre a cama. Foi o que o indivíduo deve ter feito.
Como dissemos, nós não nos conhecemos. Ele ainda não se dignou em dar as caras. Até o momento em que este texto é escrito, o mal-educado não deu sinal nenhum de vida. Estamos como espectadores.
Ontem, o barulho foi no quarto. Depois ouvimos barulho no forro do corredor. A impressão era a de que o indivíduo possui unhas grandes. Do tipo de “João Felpudo”, personagem de uma história de Lúcia Casasanta, no livro “As Mais Belas Histórias”. Ouvimos o arranhar das unhas dele. E foi só.
O inquilino novo nos fez lembrar um conto do extraordinário escritor Julio Cortázar, nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, conto intitulado “A Casa Tomada”, no qual ele narra a invasão duma casa por algo não identificado, que se vai apossando dela de tal maneira que os donos, dois irmãos foram obrigados a abandoná-la.
Mas este não é o nosso caso, o inquilino não tem nada de fantástico. Ele é real, só que não sabemos quem ou o que é exatamente. Existe. Dá sinais de que existe. Mas não o vemos. E embora não seja visto não significa que temos de ficar indiferentes a ele – ou a eles, pois não sabemos exatamente quantos são.
Levamos a notícia da invasão de nossa casa a alguns amigos e eles foram taxativos ao dizerem: “É saruê”. Pode ser. E nos apresentaram duas opções para dar cabo dele: chumbinho ou gatoeira.
Das duas opções a alternativa mais aceita é a gatoeira. O bicho fica aprisionado e depois a gente o solta lá embaixo, na “terceira margem” do Ribeirão, a montante da cachoeira, só para lembrar o nosso João Guimarães Rosa.

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