TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO

TEXTO CONVIDADO: 
MARA NARCISO
 
Fogo, terra, água e ar
 Mara Narciso
 
Quando há fúria da natureza fala-se em revolta dos elementos. Os filósofos da Grécia antiga acreditavam que a matéria provinha dos quatro elementos fogo, terra, água e ar, que neste ano encontram-se revoltados com os maus tratos impetrados ao planeta. A destruição está cobrando um preço mais alto do que podemos pagar. A Terra, nosso Domo Azul, o único lugar onde podemos viver vem sendo destruída desde a revolução industrial.  A água é o bem em maior risco, pois dos 7,6 bilhões de pessoas (população mundial em outubro de 2017), uma em cada três não tem água potável, no entanto continuamos contaminando nossos mananciais.
 
Em cinco de novembro de 2015 a Barragem de Fundão de rejeitos de mineração da empresa Samarco em Mariana, na microrregião de Ouro Preto, se rompeu e tirou do mapa o Distrito de Bento Rodrigues. Matou 19 pessoas, vegetação, animais, solo, Rio Doce e mar do Espírito Santo. Em Minas, a catástrofe macabra ambiental, fluvial, marítima, animal e humana recebeu músicas de protesto, com deslocamento de legiões de ambientalistas, hoje chamados de xiitas, radicais e contrários ao “progresso”, coisa que desconheço o que seja. A ganância falou altíssimo. O minério se foi, os rejeitos ficaram. O campo de guerra está lá. Não aconteceu a justa reparação.
 
Os desastres anunciados causam indignação, reportagens, músicas, poemas e crônicas. São 717 represas de rejeitos tóxicos no Brasil, com conhecido potencial exterminador, especialmente no verão. Em Brumadinho, Minas Gerais, a revolta da terra, não, da lama, se repetiu. As perícias revelaram, em princípio, indícios de descaso. Engenheiros da Vale confessaram pressões psicológicas para dar pareceres técnicos favoráveis, afirmando ser o rompimento daquela barragem de amplo poder de destruição, mas com baixo risco de ruptura. Rompeu no dia 25 de janeiro de 2019, matando 322 pessoas. Foram encontrados 157 corpos, e mais 165 estão soterrados, a maioria homens jovens, fato chorado amplamente. Parte da Mata Atlântica foi destruída. O Rio Paraopeba está morrendo. A lama contaminada por metais pesados caminha em direção a Represa de Três Marias. Especula-se se terá capacidade de reter o material tóxico e fatal para todos os tipos de vida e evitar que chegue ao Rio São Francisco. E que a palavra tragédia não perca seu sentido fantasmagórico e literal pelo excesso de repetição.
 
Na noite de seis de fevereiro de 2019 aconteceu uma chuva torrencial no Rio de Janeiro, com ventos de 110 km por hora. Matou sete pessoas e derrubou mais de 200 árvores. Meteorologistas afirmaram ter sido uma tempestade de verão. A pista da ciclovia Tim Maia, inaugurada em janeiro de 2016, e que já desabou em três locais, tem sua demolição cogitada. Na primeira vez uma super-onda, não prevista pelo projeto, derrubou o tabuleiro, que caiu no mar, matando duas pessoas. O deslizamento de terra da encosta fez tombar árvores sobre dois ônibus, vitimando duas pessoas. A Avenida Niemeyer, paralela a Ciclovia Tim Maia, entre a montanha e o mar ficou interditada. Ruas viraram rios, sendo que a região da Barra da Tijuca e das comunidades Rocinha e Vidigal foram as mais atingidas. Mesmo com sirenes disparadas nas áreas de risco, a força e a velocidade dos excessos da Natureza levaram casas, carros e pessoas.
 
Na noite seguinte, houve um curto circuito em cadeia nos ares-condicionados do Alojamento do Centro de Treinamento do Time Sub-15 do Flamenco, localizado dentro de um contêiner, gerando incêndio que se alastrou rapidamente, sem possibilidade de fuga das vítimas. Tinha apenas uma porta de saída. Dez dos 13 jogadores de 14 e 15 anos, que moravam lá, morreram carbonizados. Na manhã seguinte, outras treze pessoas morreram num tiroteio com a polícia.
 
Numa noite, morte por água e terra, na outra morte por fogo no ar-condicionado. Viver não é perigoso. É perigosíssimo. Desculpem-me Guimarães Rosa e seu personagem filósofo inesquecível, Riobaldo, mas a amarga história contada pelo drama coletivo está nos deixando sem chão, levado pelo descaso, e sem palavras, levadas pelo embotamento psíquico. Precisamos lavar a nossa alma.

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