TEXTO CONVIDADO: ISAÍAS CALDEIRA

Texto convidado: ISAÍAS CALDEIRA


Vae victis ( Ai dos vencidos. )

Isaías Caldeira

Nessas operações policiais em curso no país,vejo alguns acusados, com prisões temporárias decretadas, expostos na mídia e nas redes sociais com as cabeças raspadas, nesta que é a forma de sujeição do indivíduo ao Estado policial e punitivo, sempre pronto a constranger a liberdade, enquanto escamoteia outras obrigações que lhe são impostas pela Constituição Federal. Trata-se da humilhação e aniquilamento do indivíduo, sinalizando a perda de poder sobre o próprio corpo, não se contentando os agentes públicos com a mera constrição da sua liberdade, sendo necessário o ritual de iniciação, que dá-se com a raspagem da cabeça, e posterior fotografia, devidamente uniformizado, para divulgação na mídia, o que seria proibido, em tese. É evidente que, em se tratando de prisioneiro sentenciado, por óbvio que a medida tem até um caráter higiênico, evitando-se a proliferação de doenças do couro cabeludo, facilmente transmissíveis nos presídios, especialmente a contaminação por piolhos e similares. Entanto, fora dessas hipóteses, tratando-se de prisões cautelares, a prática é abusiva e completamente desnecessária, não fosse o vezo de constranger pessoas um hábito comum àqueles que se acham em poder de mando, em todas as escalas. Não se admitindo mais a tortura física, resta a alternativa da humilhação, que é tortura psicológica, de modo que um prisioneiro, que sequer tem denúncia formal contra a sua pessoa, já sofra esta pena antecipada, na forma de supressão de suas melenas, à força, como a dizer que sua individualidade ali já não conta e que ele não tem o mínimo arbítrio sobre si, enquanto sujeito à prisão. A prática de raspar a cabeça do acusado ou suspeito não é nenhuma novidade histórica, mas no Brasil tudo é copiado do resto do mundo com atraso, até o que não presta. Quem não se lembra das mulheres francesas acusadas de terem mantido relações com os alemães, durante a ocupação nazista, e que tiveram suas cabeças raspadas em praça pública, enquanto o povo as hostilizava, no ano de 1944, com a França já libertada? A maioria apenas tivera simples contatos com os invasores, mas foi o suficiente para a execração pública, como se elas fossem colaboracionistas dos invasores alemães. Esse desejo de destruição do outro, física ou moralmente, é descrito pela psicanálise como produto do inconsciente coletivo, encontrando na prática uma forma de punição e alívio às nossas culpas, sempre recaindo o castigo sobre o outro, imolado na fogueira pública, sob aplauso popular. Mas não nos limitamos, atualmente, a esses desatinos. Num País onde a Constituição regra as prisões, causa desconforto, para dizer-se o mínimo, ver pessoas sendo tiradas de suas casas, logo no desjejum matinal, conduzidas coercitivamente, para prestarem depoimentos em inquéritos, sem que se tenham negado previamente a isto. Resta clara a afronta às suas garantias Constitucionais, especialmente de se verem processadas dentro de procedimentos previstos na Lei Processual Penal, onde não consta tal modalidade de constrição, mesmo que momentânea, de sua liberdade. Ser conduzido por agentes policiais, diante de sua família, é uma desonra imensurável. Mas parece que a honra pessoal foi suprimida pelo Estado, e os homens, neste País, foram reduzidos à condição de coisas, sem alma, sem espírito a animá-los, desprovidos de suas subjetividades. Honra a quem tem honra, exorta o Evangelho, mas no Brasil ela é apenas um apetrecho ornando a superfície do cidadão, degradável sob os ditos interesses públicos, essa justificativa genérica para os atos de força. Também as prisões cautelares tornaram-se regra, e não mais exceção, como se ensina nos livros de direito pátrio. Prende-se desde o inquérito, sob qualquer argumento. Se inocente após investigado, liberta-se, e o sujeito volta à sua casa, mas não à sua vida, para sempre destruída moralmente, e até financeiramente. Agora as prisões se justificam pela chamada delação premiada, onde o Acusado, após ser preso até por meses, é instado a delatar seus comparsas, se os tiver, já então destroçado pelo longo tempo de acautelamento. Aniquilado moralmente, delata, recebendo regalias no cumprimento da sentença imposta. A prisão para delação premiada é uma espécie de “ pau de arara” politicamente correto, ao gosto da modernidade brasileira, avessa aos métodos de tortura física, pois a modernidade tem viés esquerdista e é traumatizada com os governos passados, dos quais se diz perseguida, mas admite esta tortura psicológica, desde que com finalidade nobre, claro, no combate à corrupção. Sei que sou caniço contra o vento geral que varre o País de norte a sul, mas mantenho-me sobre as águas revoltas do pensamento dominante, sob minha ótica. Combater a corrupção, sim, mas dentro da Lei e da Constituição Federal. De minha parte, enquanto modesto Juiz de Província, sei já inútil minha disposição de não ceder às tentações do mal, porque voto vencido no tribunal público, mas contrariamente à laicidade que os materialistas dominantes impõem ao País, continuarei servindo à lei, sem descuidar da transcendência, e à imitação do profeta Daniel, não serei responsável pelo apedrejamento de nenhum Acusado, culpado ou não.

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