CONFISSÕES nada ADOLESCENTES - III
Por Márcia Vieira Yellow
O que um homem pode fazer, que eu, mulher, não? Trocar gás e consertar chuveiro! Apenas isso, que eu saiba. As duas únicas coisas que eu atribuo a “serviço de homem”. Século XXI, depois de uma Mary Wollstonecraft, escritora inglesa do séc. XVIII, crítica das chamadas convenções femininas (recusou até onde pode o casamento por achar que a façanha era pura e simplesmente a submissão da mulher), e de uma Simone de Beauvoir que manteve com Jean Paul Sartre a mais linda e livre relação amorosa de que se tem notícia, ambos mantendo suas liberdades individuais (e aqui entendam como quiser esse “manter as liberdades individuais”), me deparo com a segregação em um ambiente de arte.
Não há nenhuma placa dizendo “somente mulheres”, “indicado para mulheres”, ou coisa parecida. Há sim, atendentes de ambos os sexos, simpáticos, educados, risonhos, abrindo as portas, indicando caminhos e.... É no “e “ que mora o perigo. E dizendo educadamente que existe um outro prédio aberto à visitação, onde poderíamos, eu e quem me acompanhava, apreciar as “profissões femininas”.
“Ham?! Isso mesmo? Profissões femininas?”, retruco. “Sim, profissões mais voltadas às mulheres”, responde o gentil funcionário do Museu de Artes e Ofícios em Belo Horizonte. Foi a minha primeira incursão pelo local. Desta vez, venci o bloqueio da ausência de tempo e avanço de horário, pra visitar o espaço que sempre admirava de longe, mas nunca encontrava tempo para adentrar. Inaugurado em 2006, a partir da iniciativa do Instituto Cultural Flávio Gutierrez e doação de acervo por Ângela Gutierrez, o museu está localizado na Praça da Estação, em prédios tombados da Estação Ferroviária Central e abriga o universo do trabalhador desde a era pré-industrial.
As profissões/ofícios são retratadas com muita sensibilidade e sim, há mulheres, neste primeiro espaço, mas quase sempre em posição inferior. Como amparo do homem, sem assumir a dianteira, a posição de comando. Aquela velha história de “por trás de um grande homem sempre existe uma grande mulher”, que as próprias mulheres se orgulham de apregoar. Nada contra bastidores. Sou fã da energia criativa dos bastidores, de quem faz, constrói e fica ali na coxia, discretamente, abrindo a cortina para o outro brilhar. Daí vem a minha crítica feroz em cima daqueles que ao acabar o filme, apagam a tela e não deixam o espectador ver os créditos de quem brilhantemente trabalhou para aquele resultado.
Mas isso nada tem a ver com “ofício masculino ou feminino”. Tem a ver com talento, disposição, dom, capacidade, que nascem com o ser humano ou são desenvolvidos ao longo da existência, seja homem ou mulher.
E não se deve culpar aos homens pela sua incisiva mania de querer definir o que a mulher pode ou não fazer. Eu mesma uma defensora da igualdade e da justiça, sou capaz de me surpreender com pensamentos preconceituosos como: “se é feio um homem bêbado, imagina uma mulher”, ou “acho feio o ato de fumar, mas numa mulher é bem pior!”. Na verdade, o que aos meus olhos não é bem visto, não depende de gênero pra o ser. Cabe a mim policiar este tipo de atitude pra não achar que “é mais feio porque é mulher”.
Ou seja, se existem culpados para esta permanente segregação, podemos dizer que mais as mulheres foram e ainda são, responsáveis por alimentá-la.
Achei engraçada a ocorrência no museu, ou BO, como diria Joyce e Adão. Não deixa de ser trágica, se se imaginar que ainda hoje, o cotidiano sugere uma mulher frágil, comprometida com tarefas femininas, não obstante o exercício dos ofícios masculinos fora do lar. A distribuição igualitária de deveres e ousadias, independe de sexo.
Fiquei imaginando o que seriam as tais profissões femininas. E vejam só: “Ofício da conservação e transformação dos alimentos” está lá, no universo feminino. E não deixa de ser uma definição linda e poética para um ofício que conhecemos tão bem: cozinhar!
Isso um homem sabe fazer melhor do que eu: cozinhar. Ah, e também trocar gás e consertar chuveiro! De resto, não me sinto inapta a transitar no universo masculino. E usufruo sem o menor constrangimento dos mesmos direitos que alguns supõem ser prerrogativa masculina. Posso não mudar o mundo, não chegar a Beauvoir ou Wollstonecraft, mas sou responsável por imprimir à pequena parcela de mundo que me cerca, aquilo que acredito: “não faça ao outro aquilo que não gostaria fizessem à você”, “respeito é via de mão dupla”, e “liberdade, igualdade, fraternidade”, que embora lema da bandeira francesa, cabe sempre em qualquer lugar!