TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO
Catrumano
Mara Narciso
Distraída,
só conheci a palavra “catrumano” em 1993, através do Restaurante Catrumano, na
Vila Regina. Depois a cidade teve o “Território Catrumano Bar Cultural”, no
Bairro Major Prates, do antropólogo João Batista de Almeida Costa. Sua tese de
doutorado foi destacar a importância da cidade de Matias Cardoso no norte de
Minas como fonte de alimento na mineração da região central do Estado. Em 2005
foi criada a “catrumania” e o Movimento Catrumano. Desde então, entendo essa palavra
como um modo de vida roceiro, um autêntico vivente do sertão seco e violento.
Ildeu
Braúna (16/05/1953 - 30/05/2015), registrado Ildeu de Jesus Lopes, foi
político, escritor e compositor. Em parceria com Pedro Boi, compôs mais de cem
músicas. “A lenda do arco-íris” e “Zumbi” são duas jóias que eternizaram seus
criadores. Compôs “Tocador de Boi”, com Téo Azevedo, gravada por Sérgio Reis.
Em 1977 criou o Grupo Agreste, que ficou conhecido nacionalmente ao fazer parte
da trilha sonora da novela “Rosa Baiana”. Morto de pneumonia aos 62 anos, o ex
Secretário de Cultura de Montes Claros foi regiamente pranteado, quando amigos
cantaram suas músicas de temática rural, na Câmara de Vereadores de Montes
Claros, onde foi exposto.
Escrever
no modo de “falar errado”, ser autêntico e convincente, garantindo uma
realidade rústica, sem encenação nem exageros, só mesmo para quem é catrumano
de nascença e de vivência. Em caso contrário, cai no ridículo ao expor um
artificialismo tosco. Pois a imersão na obra “Catrumano”, escrita por Ildeu
Braúna e publicada em 1994, possibilita penetrar nas roças ermas de décadas
antes, como num filme. A maneira de ele narrar suas histórias, numa linguagem
capioa, natural, sem fingimentos, ecoa numa veracidade que possibilita enxergar
o matuto falando, contando sua vida, e até mesmo sentir o cheiro de fumo de
rolo. Os casos podem ter algo de ficção, mas tomam um ar de legitimidade.
Seu
estilo, logo se nota, é coisa para iniciado, talentoso e inconteste escritor de
costumes. O linguajar é sertão puro e indiscutível. Quantas vezes ouvimos e
ainda é possível ouvir gente daqui falando daquele jeito? O modo de conversar
se enraíza de tal forma no âmago de quem nasceu na roça, que mesmo que passe 30
anos numa escola, frequente mais de uma faculdade, entre pós-graduações,
mestrados e doutorados, aquilo ali aflora, inesperadamente, porque vem da alma
ancestral, sendo de fato a essência daquela pessoa.
Excetuando-se
o inigualável João Guimarães Rosa e o seu “Grande Sertão Veredas”, em geral não
gosto de ler coisa escrita em linguagem primitiva, mas, para Ildeu Braúna,
entrego os meus pontos, devido ao seu dom de recriar. Destaco o conto que dá
nome ao livro, e como crítica, faltou uma personagem feminina forte, narrando
sua vida.
Ao
final, tem um dicionário “curraleiro”, e, entre palavras resgatadas de um
passado tão longínquo quanto o sertão norte mineiro, descobre-se o que vem a
ser “catrumano”, uma ideia, até então, inconsistente para alguns. De cunho
pejorativo, lá estão por sinônimo “matuto”, “bugre”, “capiau”, mas falta
“caipira”, como Peré – Luiz Carlos Novais se referiu a Ildeu Braúna nas orelhas
do livro. Entre as curiosidades dos contos em que cada qual expõe sua história,
sem travessões nem aspas, vi retornar fantasmas como “acoitou” = se escondeu,
“bengo” = capim, “bruacas” = mala de couro cru, “bitelo” = grande, “capado” =
porco para engorda, “deu a testa” = discordou, “encafifado” = preocupado,
“estropiado” = cansado, “famiage” = toda a família, “gungunou” = balbuciou,
“lusco-fusco” = crepúsculo, “mandaíba” = muda de mandioca, “matula” = bagagem,
“melar” = embebedar, “pé d’água” = tempestade, “precatas” = alpargatas,
“serventia” = utilidade, “surrão” = saco de couro, “tabatinga” = argila mole,
“tilanguenta” = esfarrapada.
Após
atravessar rapidamente as 82 páginas, treze contos e um glossário, fecha-se o
livro já se pensando em relê-lo para se re-extasiar num novo mergulho no
sertão. Ildeu Braúna percorreu esse caminho, conheceu essa gente de vida dura,
nos lugares ásperos que exigem essas forças e essas vinganças. Só assim para
entender o pensar, o linguajar e o agir do sertanejo. Por esse feito, é preciso
oferecer fartos aplausos para o mestre.