Respeito até o fim, ainda que se perca tudo pelo caminho
Mara Narciso
Todo mundo quer escrever sobre o recente livro de Glorinha, acadêmica da Academia Montesclarense de Letras, Maria da Glória Caxito Mameluque, e sua filha Christina Mameluque Lúcio, co-autora, embalados pelos furtos do Mal de Alzheimer e agarrado na desnudada coragem das autoras. Elas vêm a público explicar como têm enfrentado, e quais os recursos utilizados no convívio com essa demência senil, que vai levando o espírito pouco a pouco, deixando o físico, ainda que este também se deteriore rapidamente. É fácil se enternecer com o desamparo de uma criança, mas ficar condoído por um idoso zanzando pela casa, repetindo uma pergunta, tendo comportamentos inadequados, é preciso, alertam as autoras, esposa e filha de Pedro Mameluque Mota, afetado pela doença, de bastante amor. Paciência é necessário, porém insuficiente.
O primeiro capítulo é comovente. Resume as sutis alterações imperceptíveis, notadas no retrospecto, até mudanças mais graves, mentais e de comportamento, e as dificuldades da marcha e equilíbrio, arrancando lágrimas. Enxerga-se Pedro desaparecendo, indo embora, enquanto deixa saudades do que foi, do que fez e do quanto é duro vê-lo partir em vida, um pouco mais a cada dia. É dramático, é dolorido, potencializando, pela desconstrução da vítima, também o desmoronamento da família. Os fortes resistem, e a família de Glorinha resistiu. Ela fala das alterações de memória, as mais conhecidas, mas também das flutuações no humor, fala e compreensão, e das dificuldades de locomoção. Na opinião de Glorinha, ao contrário do câncer, deve-se ocultar do afetado a sua condição, pois não interfere na evolução da doença e em nada poderá ajudar em seu inexorável curso. O diagnóstico é clínico, e apenas a autópsia poderá dar o laudo definitivo. Os remédios são paliativos, e tentam retardar a evolução do mal.
A nobre intenção das autoras é reduzir o medo, o preconceito, e contribuir com sugestões de como cuidar e aceitar a perda irremediável do ente querido, que pode viver por muitos anos com esta doença degenerativa. A história corre despejando emoção, pingando corajosas lágrimas, lavando a alma das autoras, dando apertos no coração de quem lê. Toda a família se envolve nos cuidados, impondo a verdade de que o amor tudo suporta, ainda que afogado por desespero e desalento momentâneos. A família optou por organizar a vida em torno da doença do marido, pai e sogro, para lhe dar uma vida digna em todos os sentidos. A tônica dos cuidados é respeitá-lo, sem contrariá-lo e nem tratá-lo como criança. No começo levando-o às viagens, pois a família já viajou muito, e, depois de oito anos, segue uma rotina, buscando inseri-lo dentro do possível, em algum contato social. A casa foi reestruturada, o casal se mudou para o térreo, a filha Christina com o marido Lúcio e o filho Fernão mudaram-se para lá. Um apoio indispensável agora. Glorinha, diante da impossibilidade do marido dirigir, voltou a fazê-lo.
Christina faz seu relato de filha, sendo admirável seu equilíbrio, suas ações, sua paciência. O apoio é total, numa narrativa amorosa e sincera. Mostra, sem escancarar, seus cuidados e atenção ao pai, pessoa de modos gentis e discretos, mesmo doente. Dedicada, abre mão do próprio conforto, para ajudar sua família montada sobre valores cristãos. Os quatro filhos de Glorinha e Pedro, Gustavo, Leopoldo, Christina e Patrícia apresentam suas visões e contribuições no tratamento daquele homem generoso, que foi prefeito de São Francisco por duas vezes, e trabalhou como advogado por mais de 50 anos, recebendo homenagens pelo trabalho junto às famílias e aos encarcerados.
Destaco o relato de Jorge Lúcio, seu genro, que foi de uma sinceridade constrangedora, de tão bela. Como é bonito ver pessoas que se respeitam, que se amam, que reúnem esforços na dor, para se manter de pé, de forma equilibrada. Sei que há momentos de se descabelar, de se revoltar, de impacientar-se. De mãos dadas, pode-se ir muito longe, e com mais segurança do que quando se vai só. Nisso, agarrados uns aos outros, e pisando no alicerce de concreto forte, a família construída por esse casal Glória e Pedro, torna possível, se não mudar o desfecho, ladrilhar com flores o pedregoso caminho.
Glorinha Mameluque formou-se em três cursos superiores: enfermagem, direito e psicologia. Discreta, e com muitos livros publicados, sentia nela a auto-censura. Aqui, tal fato desaparece, mantendo seu estilo elegante, de mulher bem amada, revela tudo sem revelar demais. O lado penoso da higiene corporal, considerado o lado feio de qualquer doença, especialmente numa pessoa que, com o tempo, perde o controle do seu corpo, não foi ocultado.
Fiquei recompensada em ler o livro, útil, esclarecedor e tocante, com depoimentos dos que cercam Pedro, carinhosamente, além da sessão de fotos em que celebram a vida antes, e depois da doença, e mais a parte médica, com dados explicativos do mal. “Sabemos quem ele é: Convivendo com o Alzheimer”, conta muito mais do que a dor de uma família que perde seu pilar, sua referência, sua maior marca. Mostra uma história de amor. Parabéns à família Caxito Mameluque!
28 de março de 2015