TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO
Pós-verdade e autoverdade
Mara Narciso
Enquanto algumas palavras vão perdendo seus significados - diluindo-se pela superexposição, novos verbos vão surgindo pelo neologismo, alguns horrendos como elencar, acordar (fazer acordo) e outras curiosas, como monumentalizar, fulanizar, relativizar, naturalizar e judicializar. Os estrangeirismos deletar e escanear se tornaram habituais, e assim vamos singrando os oceanos vocabulares.
As notícias falsas, antes chamadas boatos, são contadas enaltecendo um lado e denegrindo o outro. Chegam para dominar, seduzir e sequestrar consciências. Desde o advento das fake news publicadas por robôs com fins eleitorais, surgiram expressões para denominar as mentiras travestidas de verdades, nas quais mergulha a população crédula.
Tudo começou com a massificação da internet, quando foi possível observar novos comportamentos, mas, o mais curioso foi verificar que, desde 2013, um grupo de pessoas acredita numa coisa e o outro grupo, também majoritário, acredita em seu oposto. Esse fenômeno intrigante, pela convicção fechada de cada grupo, que acha que quem pensa diferente é tolo por não saber o que ele sabe, fez a cultura de massas estudar os fatos. Para Umberto Eco, “o leitor é um agente ativo do texto”. Cada um entende o que melhor lhe cabe.
Em 2016, foi cunhado em Oxford, o termo pós-verdade para denominar o fenômeno. Depois de ver os acontecimentos, ler e ouvir a respeito da polarização que se dá a partir das mesmas informações nota-se que a pós-verdade segue a verdade, não a desconhece, mas se afasta dela, camuflando-a, não sendo, propriamente, uma mentira. Baseando-se em suas crenças e convicções, um grupo de pessoas está mais propenso a acreditar e a se deixar levar por certo tipo de informação, enquanto o outro grupo é mais suscetível a crer no contrário, coisa desconectada da realidade. No caso, a emoção faz a opinião pública. “A pessoa acredita nas notícias que melhor se adaptam aos seus conceitos” – Leandro Karnal.
O excesso e a volatilidade das informações levam a uma nova maneira de lidar com os boatos, sem considerá-los totalmente falsos. Cada um crê nas notícias que não brigam com suas convicções. Estas são construídas sobre sementes daquilo que já se acreditava. A angústia, diante das opostas interpretações dos fatos leva ao adoecimento, às incertezas, e assim a expressão pós-verdade nomeia e amplia a insegurança geral.
Esse comportamento em massa está, desde então, sendo usado pelos meios de comunicação e pelos políticos para amplificar seus poderes de persuasão e conquistar mais adeptos. A partir de dados fraudados, jogados ao ar como notícia confiável, com cada lado catando o que lhe interessa destacar, os receptores seguem a ideia principal sem questionar, impregnados por suas falsas certezas. Nada conseguirá demovê-los, porque não duvidam de nada que favoreça o lado em que estão.
A autoverdade é uma desfiguração da verdade, partindo das certezas de quem fala para convencer o outro. A falácia se aproveita do terreno fértil das crenças de quem ouve. É algo que foge à lógica e à argumentação. É um negar, um achar, um querer, um auto-sentimento que, em discurso, simplesmente vira fato ou ciência, como se fosse fruto de árdua pesquisa. Alguém diz: eu tenho a sensação de que tal dado não é verdade. Daí, o tal sentir passa a valer como realidade.
A autoverdade é a verdade daquela pessoa específica, sendo autoproclamada. Quem ouve, acredita, e depois de sedimentada se torna uma espécie de cláusula pétrea. Quem pratica a autoverdade crê nela, manipulando informações, para, com seu discurso ganhar pessoas. Quem pensa estar escolhendo, se surpreenderia ao constatar a manipulação da indústria cultural. Caso alguém chame a informação de mentira, que, àquela altura já se transformou em dogma pelos fanáticos, sofre ferozes ataques na web. No cyberespaço transitam as principais estratégias políticas.
A pós-verdade abandona a ética e tem um objetivo a ser atingido. A realidade não importa, e a versão dela é destacada. A favor de crendices, negam-se a ciência e a história, rasgam-se livros, apóiam-se versões mentirosas, desmentidos dos acontecimentos, da realidade, da verdade, com descarte daquilo que é do conhecimento de todos. O envolvimento é tão forte que, hipnotizadas, as pessoas seguem o líder.
Nossa Pátria está mergulhada na pós-verdade e na autoverdade. O que virá depois?