Hélio Ribeiro embalou meus sonhos de menina/
Mara Narciso
A tecnologia promete o futuro, mas a parte mais visível é o passado, seja pessoal, seja universal. A internet muda cada um, cria hábitos, modifica grupos, conduz um país e altera o destino da Terra. A memória individual perde força diante da memória coletiva, uma colcha na qual cada um coloca um pedaço, que emociona, enquanto reúne grupos de ex-colegas perdidos. Nestes, o passado se impõe, tornando-se imperativo.
Deve ser esse vício de passado, sede e fome de revival que prende milhões fazendo-os se desgarrarem dos que estão por perto, para se ligarem aos que estão longe no espaço e no tempo. O tecla a tecla vai trazendo pessoas e fatos guardados nas dobras da memória que retornam reais. Afetos renascem, cheiros voltam e emoções saborosas trafegam. Saudades mortas ressuscitam, vontades esquecidas estão de volta, sons trazem ecos de um tempo que se julgava perdido, chegando com força através do olhar, lembranças, fotos, filmes, músicas, amores. É um prazer grande, que surpreende, pois coisas que não foram tão valorizadas podem ser colocadas num altar. A distância no tempo favorece a benevolência.
Em 2010 chegou a voz sem imagem do radialista paulistano Hélio Ribeiro, nome artístico de José Magnoli. Era lembrança de mais de 40 anos, sem nenhuma notícia depois da perda de contato, e estava inteiro na minha memória áudio-emocional. Foi quando escrevi sobre essa minha experiência. Descobri seu rosto e soube que tinha falecido em 2000. Tem site e Fã Clube.
Ainda menina de 13 anos, chegava do Colégio Imaculada Conceição, tirava o uniforme azul marinho e branco, almoçava, e ia ouvir rádio, depois que meu pai saía para trabalhar. Ligava o dial na Rádio Bandeirantes e a voz de Hélio Ribeiro invadia as minhas tardes.
Desde aquela época, 1968, o som da voz masculina opera mágicas em mim, transformando-me. Só depois fui entender o efeito dos andrógenos. O rádio ficava sobre um criado mudo, singelo, do lado direito da cama de casal, o lado masculino, dominante, que trazia dinheiro, dava ordens mudas e era obedecido. Assim, o normal era Milena, a minha mãe, ocupar um lugar secundário. Eu não conseguia ver nas palavras de Hélio Ribeiro ideias opressivas, ditando normas sem sentido, porque, fortes, pareciam falar só de amor. Eu me deixava levar pelos sons, música e voz, um prazer que me bastava.
Próximo ao meio dia começava o ritual com O Homem do Braço de Ouro e Hélio Ribeiro, na época com 33 anos, entrava pelos meus ouvidos, alterando meu corpo e minha vida com um efeito arrebatador. Era apenas um programa de rádio, mas tudo que ouvia me modificava, quase como uma ordem. Anunciava as canções que seriam tocadas, as traduções que ele faria com sua voz grave, numa época em que a música americana romântica era onipresente. É icônica sua versão de Ponte sobre Águas Turbulentas, assim como sua fala diária: “Sabe quem, sabe quem, sabe quem? Johnny Rivers”; “Esse programa é ouvido pela moça do Karmann Ghia Vermelho”. Além de tocar e traduzir cantava pedaços da letra e dava conselhos. Sentada na cama, eu viajava, na música e na voz, como sobre um tapete voador. Meu gosto musical foi forjado pelo grande locutor e a sua “Rádio Bandeirantes, cada dia melhor que antes”.
Podem-se ouvir seus programas estanques no passado, mas não estagnados, porque muitas das suas interpretações são universais. Alguns comportamentos defendidos pelo meu ídolo de então, petrificaram-se, mas não me impediram de romper barreiras, abrir caminhos, largar dos sonhos e ter uma vida plena. Ainda que o tempo tenha sepultado alguns dos seus preceitos, meus melhores devaneios de menina seguiram as ondas do rádio, embalados pela voz do eterno Hélio Ribeiro.
11 de março de 2017