segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

TEXTO CONVIDADO: ISAÍAS CALDEIRA

Soluções mágicas
Isaías caldeira


Um dia, quando criança, peguei um sofrê com as mãos. Acho que andei pegando mais um  ou outro  pássaro. Foi o bastante para meu pai alardear meus poderes sobrenaturais na cidade que só conheceria anos depois, quando parti da roça para estudar em Montes Claros. Aqui chegando, logo minhas tias e primos queriam saber dos meus  dons extraordinários. Eu, que até então não tinha a dimensão do feito e achava que apenas ocorrera de pegar os passarinhos que se mostraram dóceis e acessíveis à minha aproximação e contato, aceitei  de bom grado os atributos mágicos, de modo que cheguei a acreditar nos poderes que me atribuíam. Assim, às escondidas, sem a presença das pessoas, várias vezes me pus a observar os pardais que abundavam nos  quintais daquele tempo, tentando deles me aproximar e realizar a façanha de apanhá-los com as mãos. Bichos arredios, logo davam asas, abrigando-se  nas frondosas mangueiras próximas, indiferentes aos

meus
desejos e boas intenções, certamente  temerosos  do vezo dos meninos de  lhes dirigirem pedradas. Aos poucos, fui aceitando minha incapacidade para o  encantamento de pássaros, e quando alguém me pedia para fazê-lo, arrumava uma desculpa qualquer, especialmente de que  somente me relacionava com os passarinhos da roça, muito diferentes  dos pardais  e  outras espécies da cidade, que insistiam em comer os restos de comida jogados fora e enchiam de piolhos os telhados das casas citadinas. Ainda adolescente, dei-me conta que apenas me ativera e considerara, então,  o olhar do outro, nisso que chamamos vaidade, em contraponto aquilo que eu realmente era, um pobre mágico mirim sem cartola e sem truques, incapaz de tirar pássaros do nada, tampouco de apreendê-los em minhas  mãos pequenas e inábeis. Hoje, já um velho em gestação, por mais que me esforce em contrário, vez ou outra sou tentado pelos créditos  e  louros que alguns me
pespegam, 
e me surpreendo em gozos súbitos , movidos por uma  satisfação íntima que emerge  do somatório das loas recebidas, e  chego a acreditar, como o poeta, que alguma mão “anotou em mim o sigilo do gênio”. Graças  a Deus não duram esses desvarios mais que alguns segundos, e logo o menino fracassado nos seus pendores extraordinários emerge, colocando em fuga esse pássaro de penas douradas, da mesma gênese volúvel do beijo que   antecede o escarro, fruto do barro  informe que apodamos de opinião pública. Juiz de província, com um poder liliputiano, esforço-me para dar conta  de uma tarefa infinda, levando aos ombros a balança da justiça dos homens, onde devo medir os seus atos, sob o prisma das construções jurídicas previamente estabelecidas e codificadas. Tarefa de Sísifo, quando quase me dou por satisfeito com minha atuação jurisdicional, eis que os fatos jogam-me de novo ao  rés do penhasco, e vem a sensação de
inutilidade,
de fracasso pessoal e das instituições, por não atender minimamente aos anseios de um povo acuado e desprotegido, em permanente  risco de morte em meio a uma guerra civil não declarada.  Atuando na área  criminal há muitos anos, sei que perdemos a batalha contra a criminalidade. Cadeias superlotadas, algumas já interditadas, centenas de novos inquéritos chegando mensalmente às varas criminais, estruturas  precárias em todos os setores responsáveis pela aplicação da lei e combate aos crimes, esta é a realidade vivenciada. Não há mais vagas  no sistema prisional para maiores e menores. Para se prender alguém, coloca-se em liberdade outro, revezando-se nas celas dos presídios e centros de recuperação menoristas. Acabado  o expediente forense, após várias audiências, despachos e sentenças , retornando para casa, imagino o país daqui a alguns anos, se continuar neste ritmo, e  temo caminharmos para o impasse, para o confronto
social,
onde o descrédito nas instituições  nos conduzirá à luta fratricida, no desespero das vítimas dessa  guerra civil não declarada, que mata mais que em  países oficialmente em litígios bélicos. Mas talvez exista algum pássaro na cartola das autoridades responsáveis, e façam a  mágica de apresentarem ao público uma solução para o impasse, devolvendo  a paz hoje perdida, embora desde menino  saiba que não é tão fácil pegar pássaros de verdade sem o uso de métodos convencionais, no caso, leis mais duras, com penas que desestimulem os criminosos e efetividade no seu cumprimento. Parece  simples, mas é preciso coragem para se fazer o óbvio, deixando de lado  malabarismos jurídicos e retóricos. Afinal, a ave  da injustiça já se assenta nos umbrais das portas  e não é preciso mágica para tocá-la com as mãos.

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