Ando exausta de tanta
solidão!
Mara Narciso
A generalização é tão burra quanto a unanimidade. Hoje consideradas
carrancudas, até recentemente as pessoas eram fotografadas sérias. Agora, nesta
época de festas de fim de ano, em que a felicidade demonstrada nas centenas de
fotos de famílias em êxtase, com vinte ou mais pessoas esfuziantes de alegria,
contestar sua autenticidade é ficar fora dos parâmetros e ser apedrejado. Quem
posta tais fotos no Facebook acredita que o público crê na veracidade da cena.
Felicidade por decreto. Isso tem tempo. No Dia do Fico, em 1822, disse
Dom Pedro I: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou
pronto! Diga ao povo que fico”. Estava, pois, decretado que é preciso ser feliz,
ainda que seja num sorriso tipo exportação.
Tradicionalmente, o Natal é a festa da família, ocasião
em que se deve apaziguar os ânimos, virar a página, zerar os acontecimentos,
praticar o perdão, largar as diferenças, abandonar a mesquinharia, deixar pra lá
as desavenças, especialmente as financeiras. Brigas por causa de dinheiro? Na
minha família, não. Irmãos que não podem se sentar à mesma mesa? Só se for na
sua casa. Calúnia, injúria e difamação? Apenas na página policial do jornalismo
marrom, nos programas escandalosos da TV, ou nos vídeos acéfalos da internet.
Sobrinhos que não se toleram ou infidelidade conjugal no grupo? Nem em
sonho!
Irmãos que não brigam por causa de dinheiro, só numa hipótese: não há
nada a ser dividido. Nem mesmo o funeral dos pais. A presença dos velhos mantém
frágil equilíbrio e a turma se suporta numa falsa harmonia. Morreu um dos dois,
já começa a guerra. Poderá haver um cunhado (ainda bem que cunhado não é
parente), para não aceitar o acordo. Já dizia Paulinho da Viola: “dinheiro na
mão é vendaval [...] cada um trata de si/ irmão desconhece
irmão”.
A intenção é boa. Todo mundo quer impregnar a si e aos outros, borrifando
amor. E geralmente impregna, pois, pelo menos por um tempo, boas vibrações
circulam. Um ou outro, fingindo contestar, diz coisas amargas, raivosas, contra
a simbologia do Natal. Cede a um ou outro detalhe, mas o que quer mesmo é
derrubar mitos. Não consegue.
Poucos
lamentam se a alegria é fugaz e dura o tempo da foto ou do efeito alcoólico. E
qual é a desta conversa estraga prazeres? Contestar a imagem radiante, quando se
está empanturrado de felicidade, é coisa de recalcado. A obrigatoriedade de ser
feliz é tão forte, que quem não consegue seguir o script está fora do contexto,
um despeitado, que deveria visitar um psicanalista.
Diante de
pessoas unidas, lindas e amadas, que se ocupam do bem estar umas das outras, não
há espaço para tristeza, insatisfação, doença ou solidão “Todo mundo tá feliz/
Tá feliz/ Todo mundo quer dançar/Quer dançar/ Todo mundo pede bis/ todo mundo
pede bis/ Quando para de tocar”, Xuxa cantava em “Tindolelê”. A família, aquele
lugar onde é fácil ser feliz, deixa os infelizes deslocados, sentindo-se fora da
propaganda de margarina. Poucos suportam gente lamurienta, mal-amada,
não-realizada. Os tempos atuais determinam, e quem não atende ao efeito manada
tem de se esconder.
A família feliz e linda está à beira da mesa farta, é hora da oração,
afinal Jesus nasceu. Poucos se lembram dos desassistidos, enfermos e deprimidos.
Há muitos que estão sós em suas casas e nas ruas. Culpa deles, que não souberam
fazer as escolhas certas. Quem tocar no assunto é um frustrado
demagogo.
As festas de fim de ano com suas diversas interpretações têm público
cativo para cada tendência. A maioria quer festejar, comer, beber e presentear.
Quem não se adequar a isso e mostrar insatisfação com os exageros precisa se
enquadrar ou se calar. E que a carapuça não se assente em nenhuma cabeça feliz.
Deixe estar. Por outro lado, não há vergonha em se sentir exausto de tanta
solidão. Ainda que em meio a uma multidão
sorridente.
26 de dezembro de
2015
Márcia, agradeço o privilégio de estar em seu blog. Muito obrigada!
ResponderExcluirNa frase inicial "A generalização é tão burra quanto a unanimidade", o "a unanimidade " é sem crase. Corrigi, mas acabei enviando o texto errado, sem contar o "vendável" que surgiu por obra do corretor.