terça-feira, 27 de dezembro de 2016

TEXTO CONVIDADO: FELI PATROCÍNIO

TEXTO CONVIDADO: FELI PATROCÍNIO



           PRESENTES  DE  NATAL
                                           * Felicidade Patrocinio

A hora era entre tarde e noite de véspera de Natal. Eu, entre criança e adolescente, já vivia àquela hora, com antecipação, a emoção da beleza e do carisma que toda noite de Natal derrama sobre mim. A profunda convicção e vivência religiosas dos meus pais, pessoas espiritualizadas, transmitindo a nós seus filhos, a certeza de que vem dos céus e lá termina a nossa transcendentalidade, fazia do Natal, uma noite mágica. Fossem, quais fossem, os apertos financeiros, nada perturbava o Natal, pois nesta época, sempre havia festa, ceia, alegria, emoção e presentes em nossa casa.

Só neste Natal descobri (triste recordação), o quanto se sacrificavam os meus pais para proporcionar toda aquela fartura.

Dos onze filhos a sustentar, os quatro mais velhos já residiam nas capitais estudando em universidades, buscando no curso Superior as condições de uma ampla realização e de um futuro promissor. As despesas, antes grandes, agora se tornavam penosas. Eram diários os desafios.

O meu pai, filósofo nato com postura socrática defensor das virtudes, andava com a cabeça no alto, a vislumbrar transcendências. Ao mesmo tempo se debatendo entre a busca do ser e o atendimento às necessidades inquestionáveis dos haveres dos entes pelos quais se responsabilizara.

A minha mãe, generosa, sábia, a cuidar do espírito, mas sem tirar os pés do chão, também acudindo milagreira as premências da condição humana, dos seus.

E o fértil casal, colocado pela vida, em circunstâncias de tempo e espaço num mundo de política capitalista já exacerbada, se debate diante da responsabilidade e as dificuldades de uma prole numerosa em um ambiente, onde já se tornavam sobre-humanas as solicitações e os apelos da era consumista moderna, onde predominava a máquina multiplicadora de coisas a anular valores.

O pai se afastava do lar, mulher e filhos e se perdia pelas estradas poeirentas, mais caminhos que estradas do Norte de Minas, a abrir seus mostruários de produtos texteis-fabris, valorizando-os com suas atitudes exemplares de honestidade, respeito e grande educação. A mãe, o dia quase inteiro na escola a ensinar. Noite a dentro, acordada, à mesa da sala, na elaboração de folhas de pagamentos de outras escolas, complementando assim o sustento básico, necessário a família.

E chega o Natal, este mais magro que todos da nossa estória.

             Como perceber?  Tudo era contornado de maneira amorosa e milagrosa. Porém este foi diferente; até a última hora não se via movimento de presentes e a ceia estava menos farta. 

A mãe, lá estava ao fogão na mística de criar e multiplicar.

E o meu pai, apesar dos bolsos vazios se dirige ao centro comercial da cidade, rumo as lojas iluminadas, vibrantes e feéricas.

Entra numa e noutra. Olha brinquedos, pede preços. Tudo caro. São onze filhos, nada consegue comprar. Resolve então retornar. No bar da esquina vê o amigo alegre, festeiro que o convida a um brinde, mesmo sabendo-o intransigente abstênio.

Surpresa! Pela 1ª vez o brinde é aceito, mais um e mais outro. Outros mais e se perde a conta.

Sem condições de andar normalmente, pelo amigo é levado em casa.

E o que vê a menina adolescente?

O seu pai estranho, desfalecendo enrolando a língua em estertores, fazendo vômitos.

Quadro inédito, terrível, incompreensível. Foge à rua e desvairada acorre a casa do vizinho que possui telefone.

Em prantos solicita chamarem um médico, o mais urgente, já que seu pai está morrendo.

Vieram todos os vizinhos e o médico, que constatou o efeito violento da bebedeira num organismo virgem de álcool.

E todos ficaram envergonhados. Olhavam constrangidos para a menina-adolescente, que se precipitara.

Minha mãe chorou, o meu pai chorou, jamais esqueço.

E eu também chorei, já percebendo, apesar da pouca idade, o quanto de desespero e insatisfação traz, mais que alegria e realização, um mundo predominantemente consumista, o mundo das coisas supérfluas, gerado por um capitalismo exacerbado.

                
  *Artista Plástica, membro do Inst. Histórico e Geográfico, da Academia Feminina de Letras e da Associação dos Artistas Plásticos de M.Claros.

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