Caderno de descobertas/ Mara Narciso
A revista Manchete tinha uma seção
que se chamava “Criança diz cada uma”, de Pedro Block. E diz mesmo.
Achei um caderno, que não consultei em 2004, quando escrevi a história do meu
filho Fernando Narciso Silveira em “Segurando a Hiperatividade”, pois não me
lembrava dele. Anotei no período de dezembro de 1987 e outubro de 1988 as
estripulias do menino, desde o nascimento. Lendo-o descubro que contei uma
mentira sobre ele ter aprendido a ler sozinho, em agosto de 1987, aos 3 anos e
5 meses. Estranhamente, no caderno, eu não menciono o momento da leitura
milagrosa.
Depois do trabalho, passei na UNIMED para pegar as novas
carteirinhas. Chegando a casa, joguei os três cartões sobre a cama. Fernando
veio me receber e, impulsivo, agarrou o objeto e pela primeira vez leu “Montes
Claros”. Estas duas palavras com quatro sílabas de três letras cada uma estavam
ao lado da logomarca Unimed, que ele não leu. Ninguém se sentou com ele para
ensiná-lo a ler, isso é fato, mas menti ao dizer que tudo seria fruto da
televisão. Na verdade, foram perguntas dele e respostas nossas. Alinhavo agora
fragmentos da memória do caderno.
Quando meu casamento tinha seis anos e três meses, nasceu
Fernando, em 1º de março de 1984. Muitas marcas ficaram da sua tumultuada
infância, cuja hiperatividade o dicionário não tem palavras para medir. Ainda
não andava, então era colocado no chiqueirinho, em frente à televisão. Em 1985
tinha a novela “Um Sonho a Mais”, cujo tema era “Whisky a Go-Go”, com o Roupa
Nova. Os convidados se desmancham no salão, dançando o twist, enquanto meu
menino ficava de pé, e, segurando na grade, sacudia o quadril dentro da calça
enxuta, rindo as gargalhadas, fazendo tremer o cercado com sua animação
incontinenti.
No domingo, eu colocava Fernando no bercinho de lona ao lado da
pia, para lavar as panelas. Tomei um susto ao ouvir subitamente um cantor mirim
cantando alto e afinado: “chora coração!!”, verso da música de Wando na novela
Roque Santeiro, que já acabava, ocasião em que ele tinha 1 ano e 10 meses.
Tempos depois, eu tentava me lembrar dos três apelidos que o personagem
Sinhozinho Malta dizia, quando se referia ao seu arquirrival Roque: - Carcará
Sanguinolento, Sujeitinho e...- Dito Cujo- completou Fernando, com suas
assombrosas memória e dispersão, que faz pensar que ele habita outro mundo.
Roberto Carlos cantava “E o café esfriando na mesa”, e aos dois
anos mal completados Fernando: na casa de Roberto Carlos não tem garrafa
térmica?
No início da Campanha Eleitoral de 1986, os repórteres perguntavam
às pessoas na rua, sobre em quem votariam para governador de São Paulo.
Fernando fechava a mão imitando um microfone e a colocava diante das nossas
bocas, fazia a pergunta do voto, nós respondíamos e depois perguntava a si
mesmo dizendo: Simões. Este era o candidato mais fraco e esquecido. Pois era o
voto de Fernando, que emendava os outros: Quércia, Maluf, Suplicy, Antônio
Hermírio. Dias depois, durante o almoço, Flávio e eu comentávamos sobre
política. Eu dizia: Ulisses Guimarães deverá presidir a Assembléia Nacional
Constituinte, ainda mais sendo presidente do PMDB... Newton Cardoso também é do
PMDB, disse Fernando.
No Natal de 1986, meu filho estava obcecado por tratores, e
reconhecia todas as marcas pela imagem nas revistas, sem ver a logomarca: Ford,
Caterpillar, Massey-Ferguson, Agrale, Clarck-Michigan, Valmet, CBT, Fiatallis.
Eu me esforçava para ampliar-lhe os assuntos. Vi que o comercial das Lojas
Arapuã o interessava, especialmente o pica-pau símbolo, chamado Arapinha, que
tinha na roupa a letra “A”. Então, eu desenhei o Arapinha, e ao ser informado
sobre o que era aquele símbolo, mostrou encantamento. A Rede Manchete era
simbolizada pela letra “M”. Foi quando ele ganhou duas camisetas com essa letra
no peito. Apontando para si, vestido com uma delas, falou: “M” de Manchetinha,
mamãe? Em fevereiro do ano seguinte, com quase três anos, numa viagem a Natal,
ao passarmos por Aracaju, começamos uma brincadeira: Aracajá, Aracajé, Aracaji,
Aracajó e Aracaju, momento em que Fernando descobriu as vogais.
A sua memória visual impressionava e conhecia todas as marcas,
parecendo ler. Nesta época, perguntava o nome das letras, como se escreve isso
ou aquilo, por exemplo: como se escreve chá? C-H-A. Porque não é com “x”? Então
aconteceu, deixando de lado os tratores. Ler e escrever eram muito mais
interessantes.
14 de janeiro de 2017
Feliz com a divulgação da precocidade de Fernando, Márcia. Ibteressar-se por política aos dois anos é coisa bem incomum. Obrigada.
ResponderExcluir