TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO
Fogo-apagou
na minha infância/
Mara Narciso
Experiências
infantis, ainda que banais, na teia da vida, do tempo e da memória me parecem doces.
Lembro-me com ternura, e se não me esqueço, merecem ser contadas. O mundo
pastoril, tão novo para mim e para meus agudos sentidos marcou a folha em
branco como ferro em brasa, formando uma profunda
cicatriz. Então, a saudade vem forte, pisa fundo no peito, num misto de
contentamento e melancolia.
O
canto da rolinha fogo-apagou (Columbina squammata) atira-me na Fazenda Aliança
de Tio Indalício Narciso, nascido em 24 de março de 1897. O irmão do meu avô
Petronilho, tão amigo, com pele alva e olhos da cor de uma pedra de anil, tinha
uma doçura e suavidade inacreditáveis. Soube que a metade das suas aventuras
daria um livro. Não teve filhos e cuidava dos sobrinhos como se fossem seus.
Quanta mansidão! O que lhe sobrava em serenidade faltava em dinheiro. Era de
uma humildade gritante. Os outros lhe davam roupas que eram usadas até a
situação de ser remendadas. Era muito magro, quase que apenas ossos, com rosto
chupado, cabeça pequena e redonda, algo calva, olho direito de vidro, falava
pouco e baixo, e ficava, depois da velhice plena, sentado na varanda da sua
casa, olhando a Rua Carlos Pereira, na altura do número 45. Na cidade ou na
roça suas residências eram uma casa para todos, pois acolhia, sem distinção,
quem lá chegasse.
Tio
Indalício apreciava ler jornais, ouvir rádio, roer
pelo menos uma dúzia de pequi em cada almoço, e não gostava do frio, devido às
suas poucas carnes. No inverno, subia no fogão de lenha e ficava de cócoras
para “quentar fogo”. Costumava reunir a família em volta de uma imensa gamela
de feijão na vagem para descascar e conversar. Até a maturidade ia à Aliança a
cavalo. Abusava do diminutivo para amenizar a vida. Quando a chuva durava um
mês sem estio, e alagava tudo, ele dizia que tinha caído “uma chuvinha” e
quando o mangueiral produzia manga que “fazia lama”, informava que tinha “umas
manguinhas”. Compartilhava a mesma devoção dos catopês e reverenciava Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito e o Divino Espírito Santo. Agosto era tempo de
festa, e ele incentivava os dançantes. Era padrinho do Mestre João Faria, que
foi criado em sua fazendinha Aliança. Aos prantos, os catopês dançaram em volta
do seu caixão no dia 15 de agosto de 1980.
Ele
mesmo me contou como pagou pela propriedade, que nós falávamos ‘Liança’. Foi
comprada do seu Tio Américo Pio Dias, que era casado com sua tia Didinha
Carocha. Tio Indalício não tinha dinheiro e pagou a propriedade com sua
rarefeita produção de arroz, milho, farinha de mandioca e feijão quilo a quilo,
moeda a moeda na comercialização feita por ele mesmo na feira de Montes Claros.
Era tão pobre quanto seus agregados.
A
Aliança fica situada próxima à saída de Juramento, a seis Km do centro. A
cabeceira do Aeroporto Mário Ribeiro da Silveira dá em cima da fazendinha. Na frente
dela tem um morro meio pelado, de cascalho e cristais, com árvores do cerrado
tipicamente baixas e tortas. A casa tinha uma frente plana com janelas e uma
porta, com um alpendre lateral de piso vermelhão, e no restante, piso de
tijolos. Não havia sanitário, água encanada nem luz elétrica. Usavam-se
cisterna, pote, banho de bacia, urinol, candeia e lampião. Com poucos móveis,
alguns bancos, estrados e mesas rústicas, a casa era varrida com vassoura de
ramo. Em frente ao alpendre havia um terreiro onde se secavam grãos. No canto da cerca tinha
um viveiro com sofrês e outro com sonhins bravos e um deles mordeu o rosto de
Benedita, criada por Picucha, a mulher do meu tio. A casa tinha um longo
corredor com uns cinco ou seis aposentos. O quarto de Tio Indalício era escuro,
misterioso, com guloseimas, remédios, jornais, revistas e um cheiro próprio de
coisa guardada, que me encantava.
Ao
fundo ficava a cisterna e um amplo pomar com magníficos pés de manga espada,
rosita, carlota, comum, “coquim”, além de umbus, laranjas azedas, limões
galegos, goiabas, jenipapos, pés de café. Adiante ficava a lagoa, um rego com
piabinhas e sanguessugas, e um rio temporário. Havia ao lado da casa um curral
e a expectativa de ver tirar leite nas vacas, não me deixava dormir. Era capaz
de beber um litro de “leite do curral”. Para além havia o galinheiro, alguns
porcos e cocás, todos criados soltos.
Quando
chovia, a força daquele verde e a algazarra dos passarinhos entupiam meu
espírito de felicidade. E hoje, quando a rolinha fogo-apagou cantou em meu
bairro, trouxe os cheiros penetrantes e os sons da minha infância, para me
desequilibrarem a saudade.
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