sábado, 24 de novembro de 2018

DA ISTOÉ: A TEIMOSIA DOS FATOS

A teimosia dos fatos

Três exemplos de que a verdade histórica sempre se revela e se impõe ao obscurantismo dos regimes totalitários 

Fonte: https://istoe.com.br/a-teimosia-dos-fatos/

Antonio Carlos Prado
23/11/18 - 09h30 

Governos arbitrários e regimes autoritários fazem mirabolantes movimentos para esconder as atrocidades e desumanidades que cometem. Varrem a própria sujeira para debaixo do tapete da história na tonta ilusão de que nunca chegará alguém para arrumar a sala. Um belo dia, o destino recompõe a verdade, como acaba de acontecer com a revelação de trezentas e trinta e uma cartas enviadas por Olga Benário a seu marido, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, quando ambos estiveram presos, vítimas do nazismo na Alemanha e da ditadura do Estado Novo implantada no Brasil por Getúlio Vargas. O destino em questão é um pobre e humilde carroceiro, sem eira nem beira, que encontrou o pacote com todas essas cartas numa lixeira de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Desconhecendo totalmente do que se tratava, ele, o destino a puxar carroça, vendeu tal pacote na feira de camelôs e ambulantes da Praça Quinze. O comprador interessou-se pelos selos e envelopes carimbados com a expressão “censura” pelos governos do México, Brasil, França e Alemanha, mas também não atinou com o valor histórico daquilo que possuía em mãos. Finalmente, o barraqueiro Carlos Otávio Gouvêa Faria percebeu que todo aquele amontado de papeis era a correspondência de Olga e Prestes — e, imediatamente, adquiriu todo o material (não revela o quanto pagou). Tudo isso se desenrolou ao logo de cinco anos, até que a história vem agora a público pelo excelente trabalho dos jornalistas José Casado e Ascânio Seleme.

Façamos um rápido corte na história das cartas para situarmos, também rapidamente, os personagens históricos Luiz Carlos Prestes e Olga Benário. Eles se conheceram na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em dezembro de 1934. Por que estavam em Moscou? Prestes era o líder máximo do Partido Comunista do Brasil, stalinista e membro de destaque do Comintern (a Terceira Internacional instaurada, nos anos 1920, pelo leninismo). Olga Benário, de origem judaico-alemã, era uma das mais destacadas agentes soviéticas. Apaixonaram-se. Casaram-se. Lua de mel? Vieram ao Brasil para deflagar o levante comunista de 1935 (Rio Grande do Norte, Pernambuco e Rio de Janeiro) contra o governo de Getúlio Vargas. A derrota se deu de forma fragorosa. Em 1936 ambos foram presos no Rio de Janeiro, e aí começam as cartas (voltemos a elas) que, tantas décadas depois, seriam negociadas na Praça Quinze – e que por pouco não acabaram trituradas em algum caminhão de limpeza urbana. Elas tornam pública toda a tortura física e mental que Prestes e Olga sofreram, torturas promovidas e ocultadas pelo nazismo e por Vargas. Agora o tapete da sala do arbítrio foi levantado.
Em uma das primeiras cartas, jamais recebida por Prestes porque a ditadura de Getúlio Vargas a bloqueou, Olga informava sobre a sua gravidez. Mesmo grávida, no entanto, foi deportada por Vargas para a Alemanha de Adolf Hitler, e lá nasceu em novembro de 1936, em um campo de extermínio, a filha Anita Leocádia. Olga foi executada em 1942 em Ravensbrück. Prestes permaneceu preso no Rio de Janeiro por nove anos (sete deles numa solitária), ganhou anistia em 1945, elegeu-se senador e encontrou Anita, pela primeira vez, quando a garota já estava com quase dez anos de idade.
Há na história do Brasil muitos outros tapetes que esconderam sujeiras de regimes de exceção, mas que acabaram erguidos quando se abriram portas e janelas para o sol da democracia entrar nos aposentos — “o sol, o melhor detergente”, como o definiu o ex-juiz da Suprema Corte dos EUA Louis Brandeis. O tapete do golpe militar de 1964 serve de exemplo. No auge da repressão contra os que se opunham à ditadura, diversos guerrilheiros, assassinados sob tortura, tiveram os seus corpos enterrados clandestinamente no cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus. Os coveiros da ditadura enterraram-nos em valas comuns, junto aos muros, e com os codinomes pelos quais tais militantes eram conhecidos em suas organizações de guerrilha. Quis o destino (sempre ele!) que ISTOÉ obtivesse listas com os nomes verdadeiros e também com os codinomes dessas pessoas. ISTOÉ foi então ao Instituto Médico Legal. Diante da apresentação dos nomes verídicos, nenhum registro surgiu de empoierados e cavernosos arquivos. Quando esses arquivos foram consultados pelos nomes falsos, a verdade berrou: todos os cadáveres enterrados, no silêncio das madrugadas, no cemitério de Perus.
Igual sujeira, varrida e escondida nessa época, foi a morte selvagem imposta ao guerrilheiro Stuart Edgar Angel, filho da estilista Zuzu Angel — ele morreu com a boca acoplada a um escapamento de jipe, do qual saía gás quando os tortutadores aceleravam o veículo. Zuzu, que chegou a costurar para a esposa do ditador Arthur da Costa e Silva (o carrasco do AI-5), procurou saber a verdade sobre a morte de Stuart junto aos próprios militares. Nada conseguiu. Fez campanha no Brasil, e nada. Fez campanha no exterior, e nada. A perceber que agentes da repressão começavam a segui-la, e temendo que provocassem a sua morte em um acidente de carro, distribuiu cartas a amigos, entre eles o cantor e compositor Chico Buarque, avisando que, se “algo” lhe acontecesse, os responsáveis seriam “os mesmos que mataram o meu filho”. O acidente ocorreu em 1976. Duas décadas depois, o próprio governo brasileiro (gestão FHC) levantou o tapete e admitiu: Zuzu fora assassinada. Para ela, Chico compos “Angélica”: “(…) quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/só queria embalar meu filho/que mora na escuridão do mar (…)”. Na quarta-feira 21, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu o leilão das cartas que estava programado.
E quer saber como essa raridade histórica foi perdida a ponto de ser encontrada numa lixeira.

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