Antonio Carlos Prado
23/11/18 - 09h30
Governos arbitrários e regimes autoritários fazem
mirabolantes movimentos para esconder as atrocidades e desumanidades que
cometem. Varrem a própria sujeira para debaixo do tapete da história na tonta ilusão
de que nunca chegará alguém para arrumar a sala. Um belo dia, o destino
recompõe a verdade, como acaba de acontecer com a revelação de trezentas e
trinta e uma cartas enviadas por Olga Benário a seu marido, o líder comunista
Luiz Carlos Prestes, quando ambos estiveram presos, vítimas do nazismo na
Alemanha e da ditadura do Estado Novo implantada no Brasil por Getúlio Vargas.
O destino em questão é um pobre e humilde carroceiro, sem eira nem beira, que
encontrou o pacote com todas essas cartas numa lixeira de Copacabana, no Rio de
Janeiro.
Desconhecendo totalmente do que se tratava, ele, o
destino a puxar carroça, vendeu tal pacote na feira de camelôs e ambulantes da
Praça Quinze. O comprador interessou-se pelos selos e envelopes carimbados com
a expressão “censura” pelos governos do México, Brasil, França e Alemanha, mas
também não atinou com o valor histórico daquilo que possuía em mãos.
Finalmente, o barraqueiro Carlos Otávio Gouvêa Faria percebeu que todo aquele
amontado de papeis era a correspondência de Olga e Prestes — e, imediatamente,
adquiriu todo o material (não revela o quanto pagou). Tudo isso se desenrolou
ao logo de cinco anos, até que a história vem agora a público pelo excelente
trabalho dos jornalistas José Casado e Ascânio Seleme.
Façamos
um rápido corte na história das cartas para situarmos, também rapidamente, os
personagens históricos Luiz Carlos Prestes e Olga Benário. Eles se conheceram
na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em dezembro de 1934.
Por que estavam em Moscou? Prestes era o líder máximo do Partido Comunista do
Brasil, stalinista e membro de destaque do Comintern (a Terceira Internacional
instaurada, nos anos 1920, pelo leninismo). Olga Benário, de origem
judaico-alemã, era uma das mais destacadas agentes soviéticas. Apaixonaram-se.
Casaram-se. Lua de mel? Vieram ao Brasil para deflagar o levante comunista de
1935 (Rio Grande do Norte, Pernambuco e Rio de Janeiro) contra o governo de
Getúlio Vargas. A derrota se deu de forma fragorosa. Em 1936 ambos foram presos
no Rio de Janeiro, e aí começam as cartas (voltemos a elas) que, tantas décadas
depois, seriam negociadas na Praça Quinze – e que por pouco não acabaram
trituradas em algum caminhão de limpeza urbana. Elas tornam pública toda a
tortura física e mental que Prestes e Olga sofreram, torturas promovidas e
ocultadas pelo nazismo e por Vargas. Agora o tapete da sala do arbítrio foi
levantado.
Em
uma das primeiras cartas, jamais recebida por Prestes porque a ditadura de
Getúlio Vargas a bloqueou, Olga informava sobre a sua gravidez. Mesmo grávida,
no entanto, foi deportada por Vargas para a Alemanha de Adolf Hitler, e lá
nasceu em novembro de 1936, em um campo de extermínio, a filha Anita Leocádia.
Olga foi executada em 1942 em Ravensbrück. Prestes permaneceu preso no Rio de
Janeiro por nove anos (sete deles numa solitária), ganhou anistia em 1945,
elegeu-se senador e encontrou Anita, pela primeira vez, quando a garota já
estava com quase dez anos de idade.
Há
na história do Brasil muitos outros tapetes que esconderam sujeiras de regimes
de exceção, mas que acabaram erguidos quando se abriram portas e janelas para o
sol da democracia entrar nos aposentos — “o sol, o melhor detergente”, como o
definiu o ex-juiz da Suprema Corte dos EUA Louis Brandeis. O tapete do golpe
militar de 1964 serve de exemplo. No auge da repressão contra os que se opunham
à ditadura, diversos guerrilheiros, assassinados sob tortura, tiveram os seus
corpos enterrados clandestinamente no cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano
de Perus. Os coveiros da ditadura enterraram-nos em valas comuns, junto aos
muros, e com os codinomes pelos quais tais militantes eram conhecidos em suas
organizações de guerrilha. Quis o destino (sempre ele!) que ISTOÉ obtivesse
listas com os nomes verdadeiros e também com os codinomes dessas pessoas. ISTOÉ
foi então ao Instituto Médico Legal. Diante da apresentação dos nomes
verídicos, nenhum registro surgiu de empoierados e cavernosos arquivos. Quando
esses arquivos foram consultados pelos nomes falsos, a verdade berrou: todos os
cadáveres enterrados, no silêncio das madrugadas, no cemitério de Perus.
Igual
sujeira, varrida e escondida nessa época, foi a morte selvagem imposta ao
guerrilheiro Stuart Edgar Angel, filho da estilista Zuzu Angel — ele morreu com
a boca acoplada a um escapamento de jipe, do qual saía gás quando os
tortutadores aceleravam o veículo. Zuzu, que chegou a costurar para a esposa do
ditador Arthur da Costa e Silva (o carrasco do AI-5), procurou saber a verdade
sobre a morte de Stuart junto aos próprios militares. Nada conseguiu. Fez
campanha no Brasil, e nada. Fez campanha no exterior, e nada. A perceber que
agentes da repressão começavam a segui-la, e temendo que provocassem a sua
morte em um acidente de carro, distribuiu cartas a amigos, entre eles o cantor
e compositor Chico Buarque, avisando que, se “algo” lhe acontecesse, os
responsáveis seriam “os mesmos que mataram o meu filho”. O acidente ocorreu em
1976. Duas décadas depois, o próprio governo brasileiro (gestão FHC) levantou o
tapete e admitiu: Zuzu fora assassinada. Para ela, Chico compos “Angélica”:
“(…) quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/só queria embalar meu
filho/que mora na escuridão do mar (…)”. Na quarta-feira 21, a Justiça do Rio
de Janeiro suspendeu o leilão das cartas que estava programado.
E
quer saber como essa raridade histórica foi perdida a ponto de ser encontrada
numa lixeira.
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