Eu sou o Rio São Francisco e o Cerrado
Mara Narciso
Depois das prosopopéias criadas por Ivo das Chagas, metamorfoseando-se no Rio São Francisco e no Cerrado, incorporando-os, dando-lhes a palavra com ciência e sentimento, é preciso conhecer essas obras antes de se falar em Cerrado e Bacia do Rio São Francisco. O Grande Ivo das Chagas, Mestre em Geografia pela Universidade de Bordeaux, França, e bacharel em Geografia pela UFMG, escreveu de forma poética em primeira pessoa, as enfermidades do Rio São Francisco e do Cerrado, explicando, filosoficamente e degrau por degrau como se instala e se alastra o mal, num livro que, na verdade são dois, na ida, para um lado e com a capa “Eu sou o Rio São Francisco” e do outro “Eu sou o cerrado”, de ponta cabeça. Nos dois papéis pede socorro, mostrando uma verve de profundo conhecedor teórico que viveu a prática, morando no cerrado do norte de Minas e alhures, navegando nos barcos a vapor, conhecendo cada metro daquele bioma, as profundezas do seu subsolo, as suas águas superficiais e subterrâneas.
A largueza dos seus conhecimentos teóricos e os livros citados numa extensa bibliografia é pouco diante da paixão amorosa que Ivo das Chagas teve pelo Rio da Integração Nacional. Sobe na Serra da Canastra e lá do alto, conta a emoção do salto que o rio nascente dá. E segue rio abaixo, Brasil acima, citando características geológicas, geográficas, flora e fauna no entorno, a ação do homem, e tudo o mais que encontra pelo caminho. Desfazendo um crochê, vai explicando os destroços da presença humana, desde 1501 (Américo Vespúcio), quando o rio foi avistado pelos “civilizados”, até a facada de morte, que foi a transposição sem a revitalização. Informa que a barragem de Três Marias foi um acontecimento fatal para o rio, matas ciliares e calha navegável. A eletrificação trouxe fábricas e seus terríveis poluentes, matando ferozmente a fauna aquática. As interferências humanas são desastres anunciados que avançam feito fogo. Os impactos ambientais são experimentados no transcorrer dos fatos, numa macabra descoberta. Então, vão se instalando as doenças da bacia hídrica mais importante do país. Desmatamento, poluição fabril, erosão, assoreamento, baixa dos níveis dos lençóis freáticos, secagem das veredas, morte dos buritis - a vegetação tipo oásis, e sumiço animal. A Represa de Sobradinho, catastrófica, inundou cinco cidades: Remanso, Casanova, Sento Sé, Pilão Arcado e Sobradinho. O prejuízo ambiental foi dramático.
Da mesma forma, personificando o cerrado e dando-lhe voz e importância, Ivo das Chagas explica a dimensão da variedade da vegetação, e, ao contrário do que pregam sobre a pobreza desse ecossistema, evoca suas riquezas, fala da beleza e variedade das flores, dos frutos – em especial o pequi e dos animais terrestres, como lobo-guará, tamanduá, tatu, seriema, gambá, raposa, anta, veado, onça que “desapareceram dos lugares mais aviltados”. Lamenta a chegada dos exploradores sedentos por carvão para a siderurgia. Em 50 anos, o cerrado virou cinzas e cascalho. Até as raízes das árvores, que poderiam, em tese recuperar parte daquilo que tinham sido, foram arrancadas por tratores, deixando uma terra arrasada, para desespero do aficionado Ivo das Chagas. Tudo já ia muito mal, quando da chegada da onipresente monocultura de pinho e eucalipto e sua consequência de fim dos tempos. Desde então, o resultado está à vista de todos. Instalou-se a desertificação em nome do capital. A ganância ignora o conhecimento, e acelera a destruição. As riquezas são levadas, deixando para trás a voçoroca, cruel, profunda e incontrolável erosão. O escoamento da água predomina sobre a infiltração, reduzindo as coletas naturais, instalando-se a sequidão. As ações predatórias como um todo rebaixam o nível dos aquíferos, inviabilizando a formação das veredas.
Ivo das Chagas escreveu algo espetacular nos seus dois aparentemente singelos, mas importantíssimos livros. Os trechos sobre o Rio São Francisco, que me tocaram fundo, cito entre aspas. “Tudo começou com a construção de um barramento de minhas águas, numa região chamada Três Marias” [...] “Essa tal barragem acarretou um desequilíbrio total da minha hidráulica, de meus seres vivos aquáticos e de meus barranqueiros, sem cumprir totalmente sua função de reguladora de minhas águas” [...] “Meus peixes não puderam mais realizar o ritmo anual da piracema até o meu alto curso e, por outro lado, minhas lagoas marginais, em grande parte, perderam sua função de berçário de minha ictiofauna...” [...] “Diminuída ou anulada aquela ida e vinda de minhas águas sobre os barrancos e as lagoas, o beiradeiro perdeu parte substancial de sua disponibilidade alimentar, pois houve uma redução do pescado e a lavoura de vazante, praticamente desapareceu” [...] “O desnudamento de minhas beiradas provocou uma erosão generalizada e, consequentemente, processos radicais de assoreamento...”
Além de mostrar a “ação perturbadora dos humanos”, despertando emoção nos mais sensíveis, o autor quer desencadear ações para reduzir o processo destruidor do Rio São Francisco. Eis os objetivos de Ivo das Chagas.
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