TEXTO CONVIDADO: MARA NARCISO
Saudosismo nostálgico
Mara Narciso
Quando nasce uma criança, nasce com ela a saudade, ainda que não se lembre do aconchego uterino antes de vir à luz, como também não haverá consciência do seu fim. Não é raro o infante, ainda em tenra idade, ao referir-se a si mesmo, exprimir-se assim: “isso foi quando eu era pequeno...”, parecendo que o sentimento de saudade eclode ao nascimento.
O mais comum é ter saudade da infância, tida como o melhor período da vida. A sensação da bondade dos verdes anos vem da impossibilidade de comparações e ao fato de os cinco sentidos estarem à flor da pele, ouvidos, nariz, olhos e boca, daí serem tão gostosas as lembranças dos sabores e odores, em especial de passeios à fazenda, ou à casa da avó, ou de certas comidas feitas pela mãe, reverenciadas como iguarias.
Não se sente saudade de vivências ruins, no entanto, não há um muro nítido separando os departamentos da vida. Por exemplo, um tempo de luta, uma subida íngreme, sobre a qual se tenta ir para o alto. Nela, os passos são lentos, mas se lembrar da força que impulsionava essa caminhada e a conquista desses avanços despertará saudade.
Companheiros amealhados nos primeiros anos escolares despertam as amizades mais sinceras e as mais lembradas. Vem tanta força desses amigos, que, quase todos, na maturidade, tiveram vontade de reviver os afetos fraternos iniciados na juventude, mas que a vida separou. Os grupos de WhatsApp de diversas tendências comprovam isso, ainda que a polarização política tenha esvaziado parte dessas comunidades. Os mais sensíveis não suportaram os embates desrespeitosos e saíram, mas as confrarias sobrevivem.
À medida que os anos passam, o saudosismo nostálgico aflora, cresce e domina a cena. Mesmo adiante na vida, é bom conselho buscar o futuro, idealizar e fazer algo novo, enxergar adiante, seja no outono ou até mesmo no ocaso da vida. Projetos exequíveis devem ser planejados em médio prazo, e assim como há vida depois do câncer e planos para depois da aposentadoria, também haverá vida após a pandemia.
Há no Facebook o grupo “Tripulantes da Máquina do Tempo”, com incessantes postagens e centenas de comentários sobre pessoas de perto e de longe, objetos, hábitos, moda, músicas e listas gerais como bares ou cantores de certa época. Nesse grupo, em geral, as pessoas falam de vivências coletivas e poucas experiências pessoais das décadas de 1960 e 1970. Postam fotos antigas, falam de saudades e pessoas falecidas há muito tempo. Como tudo na internet, logo há uma divisão, dispondo-se de lados opostos os que gostam e os que desgostam, ainda que não haja o “dislike” como opção de manifestação de rejeição, antipatia e desgosto. Isso aborrece a alguns, porque qualquer assunto, mesmo aquele que sugira tendência à unanimidade, gera calorosos debates e algumas falas grosseiras.
Os “Tripulantes da Máquina do Tempo” despertam atenção e participação até mesmo de pessoas jovens, com saudades de 1990/2000. Pelo visto, a máxima “Saudade não tem idade” é arrematada verdade, num tempo em que há muitas verdades, numa lista tão grande que propicia cada um escolher a sua, acreditando ser a única.
E por falar em saudade, a escritora, poeta e professora Karla Celene Campos explicou esse sentimento da seguinte maneira: “Saudade! Saudade de tudo que o coração captura/ no entanto não permanece, desfaz-se no ar/ Saudade é dor de desejo/ do que não se deixou ficar//”.
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