segunda-feira, 16 de novembro de 2015

TEXTO CONVIDADO: ISAÍAS CALDEIRA


TEXTO CONVIDADO: ISAÍAS CALDEIRA

Lembranças 



A casa sede da fazenda era enorme, e enorme era o terreiro em volta, sob o olhar telescópico do menino, que media as coisas por suas pernas curtas, superdimensionando o mundo. O curral de lascas de aroeira em frente, as bananeiras ao fundo, junto ao jirau de madeira, onde se lavavam as vasilhas em gamelas, colocando-as sob o suporte para secarem. A água usada, impregnada de sabão de coada, era despejada nos pés de bananas, gerando cachos enormes, com necessário aporte de uma escora na bananeira. E a vida sempre igual, todos os dias. 
Então, ao longe, vislumbraram-se as figuras de uma mulher e duas crianças, em passos lentos, em direção à sede, como miragem sob o sol escaldante daquele meio de dia. Aos poucos foram se aproximando, até que se vislumbrassem a criança nos braços da mãe e as outras duas agarradas às suas saias de algodão, num azul de tintol, a blusa branca com rendas coloridas no colo e nas mangas, como se vestiam as descendentes de escravos naquela época. Usava chinelos de couro cru, bem gastos. Os pés das crianças eram descalços, as roupas puídas, mas limpas, num asseio que demonstrava a dignidade daquela mulher, da altivez como carregava a sua pobreza, emprestando-lhe uma humanidade quase arrogante , segura que sua sorte ou destino não lhe arrancara do mundo dos homens, e que era filha de Deus, gente, afinal. 
Chamava-se Alexandrina, esposa de Miguel Vaqueiro, e moravam a uma légua , no meio da mata. No alpendre, os de casa esperavam. Na chegada, a visitante deu um bom dia respeitoso à dona da casa. As crianças maiores, sendo a mais velha de cerca de 8 anos, embora aparentasse a metade, estenderam as mãos em pedido de bênçãos, enquanto a mãe segurava a mão da de colo, para o mesmo fim. Feitos os cumprimentos, foram convidados a entrarem, seguindo direto para a cozinha. 
Perguntada pelo marido, respondeu que estava no campo afora, com um companheiro, em busca de gado de criador local, reses que não viam curral há anos, paridas de várias crias na mata, mais ariscas que veado campeiro, arredias a toda proximidade humana. Saíram no final da lua crescente, embrenhando-se na mata, naquela altura do ano bem seca, para aproveitarem a claridade da noite, mais por segurança pessoal, pois abundavam onças naqueles ermos, e era preciso permanecer vigilante. Em volta da mesa, assentadas e caladas, as crianças ouviam a conversa. No fogão de lenha, a água quente foi misturada ao pó de café, moído na hora, e o cheiro bom tomou conta da cozinha, arregalando os olhos dos meninos maiores, na espera da mesa posta com aqueles regalos da fartura, aos quais não tinha acesso em casa. Serviu-se o café quente, acompanhado de requeijão e queijo, bem à vontade. As mãos ágeis dos meninos logo agarraram seus bocados, que quase nem mastigavam. Vendo que aquela família acorrera ali por força da fome, providenciou-se a fritura de ovos e um pouco de toucinho, servindo-se então uma farofa com torresmo, e tudo foi consumido rapidamente. 
Então, após alguns instantes, a mãe sentiu-se mal, vindo a desmaiar. Foram tomadas as medidas próprias, conhecidas pela experiência dos locais, de modo que ela logo se recompôs, sentando-se à mesa, enquanto arrumava suas roupas. Pediu desculpas por seu mal- estar, envergonhada daquela sua fraqueza. Disse que o marido deixara pouca coisa de comer em casa, acabando os alimentos ao final de uma semana. Que estava a família sobrevivendo de beldroega e caruru, com redenho de gado. Mas o desmaio foi porque não comiam comida de sal havia mais de mês, confessou. Fez-se então uma pequena cesta de alimentos, com os visitantes retornando à sua casa com o suficiente para alguns dias, até a chegada do chefe de família. Na saída, antes de ir-se, empertigada em sua boa altura, com face altiva, fez questão de convidar a anfitriã para um café em sua casa, assim que seu marido retornasse, pois haveria de receber o suficiente para o abastecimento da despensa, e que gostaria de retribuir a gentileza. 
Sua figura ereta, aprumada sob um corpo longilíneo e magro, perdeu-se logo depois na trilha do mato. Entanto, nos caminhos que ando trilhando pela vida, uma negra alta e elegantemente composta em suas vestes simples, segue na vanguarda dos meus passos, como exemplo de altivez e dignidade, mostrando que o homem está acima de suas circunstâncias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fique à vontade para deixar seu comentário, sugestão ou crítica, desde que respeitados os limites e a linha do blog, de não exibir conteúdo venal ou ofensivo a quem quer que seja.Postagens anônimas não serão aceitas.Posts de outros autores não refletem necessariamente a opinião do editor.